quarta-feira, 11 de março de 2015

Sobre o ódio e a tolerância na política

A violência é uma característica constitutiva do Estado e, em consequência, também da política moderna. No mundo moderno simplesmente não existe política sem violência, razão pela qual tampouco existe política sem ódio. No entanto, na eleição presidencial brasileira, os dois principais partidos denunciavam a política de ódio do adversário numa tentativa de legitimação como se, de fato, pudesse existir uma “política do bem”. O comportamento equivale a clamar por justiça social numa reunião de banqueiros. A redução da política ao ritual da disputa eleitoral cada dia mais previsível, levou o Tribunal Federal Eleitoral à proibição da crítica ao adversário como forma legitima de toda atividade política. Neste contexto tanto o bem comportado comentarista da TV quanto setores das classes subalternas sentindo-se “desprotegidos” ou “vulneráveis”, bradam pelo principio da tolerância que segundo a ideologia dominante deveria reger a atividade entre os civilizados.

Há certo invólucro moral no apelo ao amor e ao respeito como regra da política, mas a vitalidade do artificio deve-se sobretudo a operação ideológica pela qual seria possível evitar a violência e o ódio numa sociedade organizada a partir do ódio e da violência. Não se trata de determinação atávica, mas de um instrumento sem o qual a política moderna não funcionaria. Em termos vulgares, há certa reivindicação de trato cordial na arena cuja regra fundamental é o conflito de interesses, particularmente acentuada nas sociedades dependentes e subdesenvolvidas que contou, na esteira da expansão do capital comercial europeu do século XVI, com a necessária violência e racismo em sua formação, marca indelével de nossa evolução histórica e de nosso presente incerto.

Nas condições particulares da sociedade brasileira, é preciso reconhecer que a partir do evanescimento da identidade classista dos sindicatos combativos e dos partidos políticos de esquerda – PT e CUT na cabeça – as classes subalternas ficaram não somente desarmadas para enfrentar o conflito inerente à sociedade burguesa, mas, sobretudo, permaneceram cativa do discurso liberal – especialmente forte nos setores da classe média – para o qual não possuem outro recurso senão o apelo retórico a tolerância e ao “fim do ódio”, ignorando o caráter utópico do discurso. Contudo, no lado da classe dominante são setores da classe média quem exibem sem constrangimento, com suas mãos delicadas, o ódio de classe contra os pobres, os proletários, contra os camponeses e tudo que lhes parece fora da normalidade burguesa ou da sociedade tradicional.  Mais grave: no contexto atual parece que os proletários e os camponeses já não existem, pois o governo – com silencio cumplice dos tucanos – insiste no caráter classemedia da sociedade brasileira, como se Marx não fosse mais do que um retrato na parede, uma reminiscência histórica talvez lúcida, valente e apropriada para o século XVIII ou XIX europeu, mas completamente sem sentido na atualidade.

Trata-se da banalização da política como expressão do conflito para a qual contribuem não somente a renuncia precoce do PT e da CUT à identidade de classe – levando consigo os comunistas e socialistas da base aliada – mas também da redução da política a moral (vulgarmente tratada como se fosse simples udenizaçao do discurso político), onde a bandeira mais importante seria o combate a corrupção. Nestes termos, a tematização da corrupção chegou pra ficar porque diz respeito a real degradação dos partidos e, portanto, do governo. Mas chegou para ficar porque é constitutivo do Estado e, em consequência, é impossível ocultar seu caráter sistêmico. Ora, a astúcia do monopólio televisivo é clara, pois apresenta a estrutura como se fosse apenas evento! O ódio à corrupção, no entanto, é quase residual em relação aos empresários, pois se destina prioritariamente ao genérico “político”, sem dúvida, um ardil liberal para não enfrentar o vaticínio de um barbudo agora suspenso em alguma parede: o estado é mesmo o comitê de negócios da burguesia. O político vulgar, o ex-sindicalista, o empresário exitoso, o liberal bem comportado, o acadêmico no conforto do campus, e tantos outros podem merecer o desprezo e ainda o ódio da classe média: este luxo da política não poderá, de maneira alguma, senão servir como álibi para a próxima operação de assalto ao estado no qual o capital também acumula.

Não é fácil ranger os dentes no terreno da política, reconheço. Mas não haverá outra saída para nós. Em termos sociais será lenta a reconstrução de um sentido e sentimento classista, a afirmação de uma identidade de classe, aquela mesmo que era apresentada como ultrapassada pelo pensamento conservador e reacionário, que iludiu muita gente boa. No entanto, aquela pressão que se exercia socialmente nos sindicatos combativos, na defesa partidária do socialismo era, mesmo quando pálida, a única capaz de tornar mais aceitável e racional todas as desavenças pessoais e justificar, em última estancia, o ódio individual pelo vizinho de porta ou de bairro. E agora?
Agora resta o confinamento parlamentar do conflito político e o exercício cínico da cordialidade típica do cretinismo parlamentar, enquanto nossos condenados da terra sangram em silêncio nas favelas e no sistema carcerário, no assassinato do líder camponês e nos milhares de mortes violentas tipificadas de maneira conveniente como “violência urbana”, seja no transito ou no boteco da esquina.

Claro que a digestão moral da pobreza é ingrediente necessário da política da tolerância e do amor, afinal, o que pode o minguado bolsa-família num país em que apenas 5% da população concentra quase 50% da renda? A esquerda liberal acredita, de fato, que a cidadania esta em construção quando o índice de Gini se move em décimas? A eliminação de um horizonte utópico – o socialismo – cuja defesa deveria ser feita aqui e agora, alimentou ainda mais o irracionalismo da política em curso e exibe suas vítimas a luz do dia.

Em resumo, enquanto o velho ódio de classe desaparece do horizonte dos pobres dissipando antiga consciência de direitos e no momento que ganha destaque a ideologia da ascensão social nos marcos do capitalismo (seriamos finalmente um país de classe média!), é necessário acusar como engodo a possibilidade de fascismo entre nós. Ora, o fascismo é fenômeno histórico que emerge como arma da classe dominante em momentos de crise de sua dominação, quando esta já não é mais possível unicamente por meios parlamentares. Não estamos, portanto, nas portas do fascismo. No entanto, esta conclusão não autoriza a falsificação histórica, especialidade do jornalismo. Uma ditadura cordial ou “ditabranda” jamais existiu. A violência e o ódio de classe existente no Brasil são suficientes para manter as coisas no seu devido lugar, sem a necessidade de recurso ao programa fascista, razão pela qual seguirá orientando a ação do Estado e certamente contará com a tolerância, a aceitação dos governos e, no limite, a recusa calibrada dos mecanismos institucionalizados da repressão.


Nas condições brasileiras o mais provável no curto prazo é que o rechaço abstrato ao ódio e/ou a evocação igualmente abstrata à tolerância navegue sem obstáculos, ideologia necessária para que tudo mude desde que permaneça exatamente igual. Assim, o suposto ingênuo de que o Brasil é “um país da delicadeza perdida” seguirá também gozando de popularidade, ainda que não passe de tirada literária falsa. A despeito da delicadeza que ainda podemos encontrar em pessoas, a norma política nos assuntos públicos é mesmo a violência. Enquanto a maioria aceitar que “um mau acordo é sempre melhor do que o bom combate” – peça do conformismo político sempre apresentada como virtude e sabedoria política – a política e a democracia serão sempre lembradas como a arte de engolir sapos. De resto, a democracia liberal admite em seu interior a manifestação e o exercício da violência por parte do Estado e de forças sociais comprometidas com a ordem dominante. Não constitui anomalia e menos ainda um ovo da serpente quando um liberal desavisado ou grande parte da esquerda domesticada acusa que o ódio e a violência estão saindo dos trilhos. O antidoto real para os “excessos” produzidos pelo liberalismo não brotará da consciência social sem dentes para morder implícita na defesa dos pobres, mas de um projeto de classe – o socialismo – e o correspondente movimento de massas em sua defesa.   

3 comentários:

  1. Olá Professor Nildo Ouriques,

    Estou lendo "Subdesenvolvimento e Revolução" e achei simplemente fantástica a apresentação escrita pelo Senhor. Datada de abril de 2012 antecipa muitos dos problemas enfrentados no nosso país "...mais cedo do que tarde colocarão de maneira dramática opções das mais difíceis para as classes sociais em disputa na sociedade brasileira."
    Acredito que já faço parte de uma nova esquerda que busca "avançar com celeridade para recuperar o espaço perdido por quase três décadas de ditadura e mais duas de hegemonia liberal" e desejo muito aprofundar meus conhecimentos téoricos e gostaria de contar com seu apoio nessa empreitada.
    Atenciosamente,
    Mauro César Lara de Barros
    procuradormauro@hotmail.com

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    1. Caro Mauro, somente hoje abri meu blog. Agradeço o generoso comentário, mas a obra importante é, como você sabe, do Ruy Mauro Marini. Adiante na leitura!!! Abraços.

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    2. Caro Mauro, somente hoje abri meu blog. Agradeço o generoso comentário, mas a obra importante é, como você sabe, do Ruy Mauro Marini. Adiante na leitura!!! Abraços.

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