segunda-feira, 27 de julho de 2015

A unidade sindical e a greve nacional dos professores universitários

No último informativo do ANDESUFSC consta que 35 universidades federais entraram em greve. A Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) figura entre elas. No entanto, basta caminhar no campus da Trindade para observar que gozamos de sonolenta normalidade. 

Na última semana de junho presenciei no auditório da reitoria a assembléia de greve do ANDESUFSC. Não exagero em afirmar que o número de presentes era inferior a 50 pessoas.  Assinei a lista de presença, escutei os informes, a avaliação do Comando Local de Greve e as orientações para a semana. Deixei o local com imensa preocupação. No dia 17 de julho, assisti pela internet a AG da APUFSC que tampouco logrou quórum. No auditório do CCE, 86 professores exibiam o desinteresse da categoria por uma greve num momento particularmente difícil da vida universitária.

Neste momento, a exemplo de centenas de professores, não sou filiado a sindicato algum. A razão é simples: a APUFSC sofreu tal regressão política nos últimos anos e foi tamanha a manipulação em suas assembleias, que simplesmente não vi mais sentido em pagar a mensalidade. Abandonei o sindicato em 2012. Ademais, mesmo para àqueles que não possuem filiação, a lei assegura a participação com voz e voto nas assembleias de greve. Nunca estive confortável nesta posição e, tampouco, solitário; observo que grande parte dos professores “novos” da universidade não destina atenção ao sindicalismo universitário. É possível constatar ainda entre os professores mais experientes, o inocultável desinteresse pelo sindicato. Na APUFSC, até a eleição da última diretoria, o cenário era mesmo devastador. Poderá mudar? Aposto que sim.

O ANDESUFSC, a despeito das limitações legais, existe e atua entre nós. No entanto, desde que surgiu em 5 de novembro de 2009 por iniciativa de setenta e três (73) professores, pratica sindicalismo de baixo perfil, sem atividade permanente e, no limite, não conseguiu estabelecer práxis política distinta daquela oferecida pelo sindicato autorizado pelos tribunais (APUFSC). Mantém saudável autonomia em relação ao Estado, mas também enorme distância da maioria dos professores. É suficiente? Não, não é suficiente.

É muito difícil nossa situação. Na UFSC temos dois sindicatos e a greve nacional de nossa categoria não existe para a imensa maioria dos professores!

No entanto, num contexto de profunda desmobilização, o ANDESUFSC decidiu em Assembleia realizada no dia 22 de junho inicia-la. Naquele dia, menos de 80 professores declaram adesão a grave nacional e julgam representar a categoria no Comando Nacional de Greve do ANDES/SN. É um número muito pequeno para decidir a sorte de uma categoria inteira (superior a 2.400 professores, incluindo substitutos). O impacto daquela decisão é igualmente reduzido. Por outro lado, a nova diretoria da APUFSC é herdeira de uma política que fracassou rotundamente e carrega o enorme desafio de recompor os laços de solidariedade e articulação política da categoria. Este sindicato reúne a maioria dos professores, mas tem contra si os frutos de uma orientação que semeou no passado: enorme paralisia e desinteresse pelos assuntos públicos e sindicais; ademais, antes que renovar o movimento sindical, aquela orientação contribuiu, na prática, para aumentar a divisão nacional do movimento docente.

As razoes de nossa divisão

Em setembro de 2009 a APUFSC convocou um plebiscito para definir nossa relação com o ANDES/SN. O resultado de 614 contra 403 decidiu a disputa pela desfiliação, com 23 votos para brancos e nulos.  É preciso recordar, especialmente para a grande quantidade de professores que entraram recentemente na UFSC, que os erros de condução de antigas diretorias decidiram a sorte da consulta. Formou-se uma maioria que – como toda maioria – era eventual. Os vencedores consideram a vitória como expressão de uma lei de bronze: julgavam que a ruptura com o sindicato nacional criara uma “nova APUFSC”, isenta dos vícios que a maioria dos sindicatos possuem. Para piorar ainda mais o cenário, os professores que votaram pela manutenção do vinculo nacional, após a derrota decidiram abandonar a APUFSC. Erro grave e duplo. É elementar reconhecer que quando disputamos uma decisão estamos obrigados a aceitar seus resultados. Ademais, a criação de outro sindicato não alterou a vida do sindicalismo em nossa universidade e tampouco fortaleceu a estrutura nacional como a atual greve demonstra.

Em 2009, muita gente boa considerava a desconexão um ato de lucidez elementar. Hoje, somente a cegueira não reconhece que aquele movimento de “renovação” resultou em profundo desinteresse pelo sindicato, isolamento nacional e incapacidade de convocar os novos professores para o debate público acerca da função da universidade num país subdesenvolvido e na defesa de nossos salários e carreira. Na mesma medida, a criação do ANDESUFSC, a despeito do propósito de manter a independência de nosso sindicato e não privar a UFSC de representação nacional, não logrou êxito. Hoje, seu número de filiados não ultrapassa 250 professores e sequer conta com todos seus membros na greve que pretende iniciar.

A divisão sindical produzida aqui na UFSC é um erro que precisa ser corrigido com rapidez.

Quais fatores permitiram a separação da APUFSC do ANDES/SN?

Dois fatores impulsionaram a divisão que agora precisamos superar. O primeiro foi, sem dúvida alguma, a mudança da política educacional do governo em relação à universidade. Durante o mandato de Fernando Henrique Cardoso (ministro Paulo Renato) o governo atuou para desestruturar a carreira, privatizar as IFES via restrição orçamentária e avançou lenta, mas decididamente, na mercantilização das universidades públicas. Nosso sindicato nacional resistiu bravamente e contou com enorme apoio dos professores contra esta política. Ninguém poderá esquecer que, naquele contexto, até a greve de fome em Brasília foi realizada e resistimos inclusive o corte de salário realizado pelo MEC. A eleição de Lula reascendeu as esperanças de que ocorreria uma virada na política educacional do governo, mas a orientação da política econômica que marcou os três anos de seu primeiro mandato, indicou que o vale de lágrimas se manteria. Era fácil constatar que a austeridade do período FHC/Malam não somente foi mantido com Lula/Palocci, mas, inclusive, intensificado (para os que não possuem memória, é preciso recordar que Joaquim Levy ocupou, no primeiro governo Lula, um posto estratégico para a política fiscal “austera” de então: foi secretario do Tesouro Nacional).

Ainda assim, quando mais precisávamos de força e unidade, ocorreu a primeira divisão no movimento docente: estimulados por sindicalistas ligados ao governo Lula, uma pequena parte dos professores fundou o PROIFES (15/09/2004), um sindicato criado para dividir e debilitar nossa capacidade de pressão nacionalmente articulada e com importante experiência de resistência. Apesar do intenso apoio governamental, o PROIFES nunca federou mais do que 8 associações de docentes no país. No entanto, em todas as greves tratou de sabotar a força do sindicato nacional e atuou sempre como um braço oficial junto ao movimento docente.

Assim, na mesma medida em que apoiava o PROIFES, o governo Lula pretendia o isolamento social do ANDES/SN. É por isso que mesmo naquelas greves nacionais iniciadas pelo ANDES, o acordo foi somente assinado pelo PROIFES. Ainda assim, até mesmo os ingênuos sabiam que as pequenas conquistas somente eram possíveis porque o ANDES mobilizou, pressionou, resistiu e levou a negociação com a firmeza necessária. Ao contrário do que afirmam seus adversários, a recusa do ANDES em assinar o acordo final sempre ocorreu porque o governo encerrava abruptamente a mesa de negociação e determinava ao MEC o pagamento da proposta acordada com o PROIFES.

O PROIFES é, no jargão popular, um sindicato pelego. Na prática, é um sindicato débil cuja “força” reside na exata medida que pode debilitar nossa histórica capacidade de organização nacional. É, na prática, um braço sindical do governo que elimina um valor precioso: a autonomia do sindicato em relação ao Estado e aos governos.

Contudo, a partir de 2006, as condições econômicas permitiram ligeira mudança na política educacional do governo Lula. O ministro Palocci e o secretario do tesouro, Joaquim Levy, foram substituídos. A guerra do estado contra a educação publica cessou e o governo iniciou a expansão degenerativa do sistema público nacional, cuja expressão máxima é o REUNI, criado em abril de 2007.  No âmbito deste programa, surgiram novas IFES, novos cursos, ampliação de vagas, etc., mas as antigas carências sistêmicas se mantinham, pois o financiamento era obviamente insuficiente. No entanto, não podemos ignorar que os salários tiveram melhoria relativa. É possível verificar que a partir de 2005/06 começou certa recuperação dos salários dos professores impulsionada pela combatividade do ANDES/SN e a melhoria da renda da terra (evolução favorável dos termos de troca no país). Mas não há que esquecer o fundamental: a melhoria relativa dos salários e da carreira somente foi possível com intensa mobilização e unidade nacional. Portanto, ao contrário do que dizem os defensores do governo, não foi o bom-mocismo do PROIFES – e sua suposta capacidade de negociação – que permitiu a melhoria dos salários, mas precisamente o contrário: a melhoria dos salários é que finalmente explica aquele fortalecimento momentâneo do PROIFES!

Um sindicato sem dentes para morder nada conseguiria nos duros tempos da austeridade fiscal dos governos FHC-Malan/Lula-Palocci. Não há espaço para dúvidas: o período que vai de 2005/2006 até 2012 somente diminuiu o ritmo das perdas inflacionárias sem jamais restituir completamente o poder de compra dos salários. Não foi o PROIFES – e sua ilusória capacidade de negociar e ser ouvido pelo governo – mas a combatividade e capacidade de articulação do ANDES/SN quem orientou cada decisão do governo na “mesa de negociação”. No limite, o governo fechava um acordo com o PROIFES e deixava como única opção para o ANDES/SN a política da recusa. Em perspectiva, a despeito de vícios que precisam ser superados sem demora, é notável que ainda possamos contar com um sindicato nacional, relativamente articulado, após tantos ataques e manobras governamentais.

A situação da UFSC

Com a divisão nacional impulsionada pelo governo e a melhoria relativa dos salários e da carreira, um grupo de professores da UFSC considerou que estavam criadas as condições para romper com o sindicato nacional. Ainda mais: erroneamente, consideraram que não mais existiam razões para a unidade sindical. Aproveitaram erros reais (e também imaginários) na condução do sindicato nacional, e alimentaram um voluntarismo sem precedentes na política local. Julgavam, também erroneamente, que os tempos de “austeridade” pertenciam ao passado e alimentaram sem inibições a consciência ingênua de que o país estava assumindo outro papel no mundo atual para o qual as universidades cumpririam papel estratégico...

No entanto, bastaram dois anos de desconexão com o movimento nacional para que pudéssemos verificar na APUFSC as mesmas práticas que eram consideradas inaceitáeis para o movimento sindical nacional. A “nova” APUFSC, então sem vínculo com o sindicato nacional, logo reproduziu os mesmos vícios que aquela maioria momentânea do plebiscito condenava: observamos a diretoria tomar posições sem amparo no Conselho de Representantes (CR), participar de negociação em Brasília sem autorização ou conhecimento de nós professores, a aberta manipulação de assembleias, etc. Tampouco podemos esquecer que a necessidade do quórum para o CR era incompatível com o modelo acadêmico escolhido, razão pela qual esta instância funcionou durante meses a fio sem quórum qualificado e, a despeito de lutas jurídicas, dificilmente conseguirá cumprir a determinação regimental.

Assim, aos poucos, silenciosamente, longe da atenção da maioria dos professores, a APUFSC ficou sem articulação nacional, mas também deixou de ser referencia política e sindical para a maioria de nós. A incapacidade de ter quórum mínimo para uma AG nos dias atuais (míseros 5%) e também a controvérsia sobre o quórum para o CR, expressa o colapso daquele projeto isolacionista. Não há surpresa neste final melancólico. Nem existem motivos para permanecer aferrado àquela decisão que se revelou um fracasso. A mudança é uma necessidade!

O primeiro passo: a reconstrução da unidade sindical na UFSC

Os sinais evidentes de que a situação econômica do país tinha mudado já existiam em 2012/13, mas somente neste ano se expressaram de maneira clara. A presidente Dilma anuncia a política de “ajuste fiscal” para tornar sustentável o ganho dos rentistas via pagamento e renegociação permanente da dívida. Em 2014 (LOAS) o governo destinou R$ 170 bilhões de reais para os juros e encargos e outros R$ 807 bilhões para amortização e refinanciamento da dívida. A mesma fonte indica que para a rubrica “pessoal e encargos sociais”, o orçamento reserva tão somente 237 bilhões. Em 2015 a previsão é ainda mais generosa; enquanto volumoso recurso é destinado aos rentistas, a presidente determinou em janeiro, via decreto, a redução de 7 bilhões para o MEC. Em maio, o contingenciamento alcançou 10 bilhões. Agora, no final de julho, o governo anuncia novos cortes, reduzindo mais o minguado orçamento em educação. 

O frio corte orçamentário numa estrutura já cronicamente deficiente produziu fenômenos como aqueles que podemos ver na Universidade Federal da Bahia ou na UFRJ: na primeira o Conselho Universitário decidiu a suspensão do calendário escolar e na segunda os sinais de exaustão financeira determinaram a paralisação da universidade mesmo sem a greve dos professores. Nestas universidades, os reitores indicam claramente que nas condições atuais, a universidade não pode seguir funcionando. A ANDIFES, entidade dos reitores, manteve durante todos estes anos um silêncio cúmplice que hoje cobra seu preço.

Nestas circunstancias, a atual negociação entre o MPOG e os sindicatos do setor público é quase simbólica, pois a margem para ceder na mesa de negociação existe em razão direta da força do rentismo defendido pelo Ministério da Fazenda, muito superior ao poder dos sindicatos. Não há habilidade de mesa de negociação capaz de fazer o governo ceder. A aventura do PROIFES exibe seus limites. A greve é a única força capaz de arrancar do governo compensação para as perdas inflacionárias cada dia mais pesadas.

A proposta do governo é clara: 20% distribuídos em 4 anos. Ora, somente neste ano (2015) sofreremos com uma taxa de inflação de dois dígitos (superior a 10%). Na prática, o governo nos empurra para aceitar importante perda salarial. Os pequenos ganhos do período lulista agora precisam ser devolvidos sem gemido. Ao contrário do que dizem os defensores da política rentista de Dilma-Levy, o ajuste não é passageiro. Longe de apertar agora, para logo voltar a crescer e distribuir, entramos num período que será marcado por forte processo de privatizações, maiores prêmios ao rentismo (taxa de juros) e arrocho sobre os salários do setor público. Nem mesmo o mais otimista pode ignorar que o “ajuste” possui caráter permanente! A taxa de desemprego crescerá fortemente e os reajustes salariais do setor público serão concedidos a conta gotas e de maneira seletiva (somente para as carreiras consideradas “de estado” ou “estratégicas”, entre as quais não figuramos, obviamente). Alguém pode supor que contamos com algo mais do que nossas próprias forças nesta batalha? Poderemos contar com algo além de nossa unidade e capacidade de organização? 

A divisão sindical neste contexto conspira contra nossos salários e carreira. A unidade sindical é decisiva para manter o pouco conquistado, mas, sobretudo, é importante para evitar perdas que já estão sobre a mesa de negociação. Não há espaço para ingenuidade e tampouco para o voluntarismo. Não somente a unidade sindical na UFSC é decisiva, mas também nossa re-articulação com o ANDES/SN é igualmente estratégica. 

Portanto, defendo que as novas condições políticas exigem a unidade em torno da APUFSC, incluindo aqueles que por justas razões a abandonamos no passado recente. Da mesma forma, é evidente que devemos nos rearticular com o ANDES/SN e evitar o PROIFES, um perigoso braço sindical do governo criado pra nos debilitar. A filiação formal ao sindicato nacional é questão de tempo e de amadurecimento político que somente juntos podemos construir. Não importam os motivos que levaram os dois bandos para rumos diversos; a crônica sobre quem tinha ou não razão deve ficar pra nossos netos. O presente nos impõe a unificação diante da necessidade de defender os salários e a carreira. 

Agosto esta chegando

É impossível manter a indiferença diante da greve nacional. Na situação atual de profunda despolitização, a maioria dos professores sequer discutiu se as condições são ou não favoráveis para a luta salarial. É preciso convocar a todos para esta reflexão coletiva tão logo o semestre inicie. Ora, divididos será sempre mais difícil e, sem luta, ninguém nos escutará em Brasília. O “ajuste” esta apenas na primeira fase e será cada dia mais forte. É claro que as perdas serão maiores na ausência de resistência.

É verdade que o isolamento social das universidades é muito maior agora do que em qualquer época. Há duas razões para tal. A primeira é que num país que sofreu gravíssima regressão industrial, a universidade termina cumprindo papel marginal. Aqui não contam os apelos abstratos as possibilidades de contribuições científicas e tecnológicas das universidades públicas. A segunda razão de nosso isolamento social é produto do padrão de trabalho acadêmico dominante – o academicismo – que contribui ainda mais para nossa marginalidade social na medida em que o desempenho é basicamente avaliado pelos pares, sem validação social do conhecimento. Em resumo, estamos mais distantes da população e também mais afastados da universidade necessária preconizada por Darcy Ribeiro.

No entanto, a luta salarial seguirá sendo decisiva. E a redefinição da universidade nos marcos de severa restrição orçamentaria e financeira demandará de todos nós profunda reflexão que deve superar o surrado bordão de “defesa da universidade pública, gratuita, de qualidade e socialmente referendada” com o qual o ANDES sustentou até agora nossa unidade com certo vigor e eficácia. A situação do país exigirá de nós muito mais do que a justa defesa dos salários, da carreira e a manutenção do sistema nacional de universidades públicas. Num ambiente em que até mesmo a ANDIFES prima pela omissão ou descarada cumplicidade com o governo, podemos nos dar ao luxo de dispensar um sindicato nacional forte, coeso, democrático e combativo? Seguiremos convivendo com dois sindicatos locais (APUFSC e ANDESUFSC) sem conexão real com a maioria dos professores?

Enfim, a unidade sindical é uma exigência da realidade. A greve revelará cada dia com mais força que a manutenção de nossos salários bem como a necessidade de suplementação orçamentária para o funcionamento das universidades não poderá ser conquistado com divisões obsoletas e menos ainda com a despolitização do discurso e da prática sindical.


domingo, 28 de junho de 2015

À esquerda e a frente!

Há em curso uma tentativa de realizar a "frente de esquerda" no Brasil. A imprensa anuncia que a iniciativa foi de João Pedro Stédile, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). O álibi é sempre o mesmo: enfrentar a onda conservadora em ascenso no parlamento e nas ruas. Há também, outras defesas para a mesma proposta. A Esquerda Marxista, por exemplo, conclama a todos para a adesão a uma frente que "retome os princípios que estiveram na origem do PT, que ajude a abrir uma saída para a atual situação, para organizarmos a continuidade da luta pelas reivindicações, por um novo mundo, pelo socialismo". ("O que Lula pretende com as críticas ao governo e ao PT?") Neste caso, devemos reconhecer que a empreitada não é pequena e os poderes conferidos a tal "frente de esquerda" são enormes, virtudes quase capazes de justificar nossa existência.

Em nota distribuída dia 26 de junho em resposta ao chamado do líder do MST, o presidente nacional do PSOL, Luiz Araújo, defende uma frente pela esquerda. No entanto, numa reunião realizada em São Paulo no dia 27 de junho, o jornal paulista Folha de São Paulo anuncia que um grupo "com dirigentes do PC do B, PT e PSOL" criaram um embrião de coalizão que se chamará Grupo Brasil, destinado a criar e divulgar uma pauta de eventos em defesa de direitos dos trabalhadores. O deputado federal Ivan Valente teria enviado representante e Leo Lince, articulador do PSOL/RJ, teria comparecido.

A dupla natureza da crise

O diagnóstico que motiva a Frente de esquerda ou a Frente pela esquerda é, no entanto, superficial. Há, de fato, certa desinibição da direita no país. A razão fundamental da direitização é resultado direto e em primeiro lugar, da aliança de classe que o PT assumiu sem vacilação antes mesmo de conquistar o primeiro mandato presidencial. A tentativa petista de hegemonizar o pacto de classe - considerada por muita gente boa e não poucos oportunistas como um ato de sabedoria - era clara: tirar dos tucanos o monopólio da autoridade sobre o Plano Real. Não há dúvidas que o giro a direita foi exitoso. No entanto o custo não foi apenas elevado, mas fatal. Na operação, o PT como partido de esquerda fracassava historicamente de maneira definitiva! Os "dirigentes" do partido ficaram embriagados com o resultado e esqueceram que a classe dominante brasileira dispensa os partidos políticos para sua dominação classista, caso contrário não teria lançado mão de uma ditadura de 21 anos! Esqueceram também que sua transformação em principal partido da ordem cumpriria apenas uma função defensiva necessária: manter os trabalhadores afastados do radicalismo político. A precoce adesão do PT a ordem dominante, criou o SISTEMA PETUCANO, esta particular aliança que opõem dois partidos na luta parlamentar enquanto os iguala no horizonte histórico e programático. Esta crise não tem solução nos termos do quadro partidário atual e impede o PT de ressurgir das cinzas, negando-lhe a possibilidade converter-se no futuro em Ave Fênix.

Na outra ponta, a crise do capitalismo dependente aparece como crise da política econômica. Neste terreno, a breve primavera que permitiu ao pacto de classe petucano e aos governos petistas conceder a caridade cristã aos trabalhadores na forma de migalhas da política social, chegou ao seu fim. A crise financeira do Estado brasileiro é apresentada como crise fiscal e assumida pelo PT e seu governo como tal. Agora há o inconveniente de que não se pode atender aos dois senhores ao mesmo tempo, razão pela qual o petismo recruta um obscuro funcionário do sistema financeiro para manejar a política econômica em completo acordo com os tucanos. No fundo, com pequenos percalços, o apoio parlamentar a Joaquim Levy é completo e funciona como a única razão consistente para que os tucanos não assumam o "fora Dilma" como bandeira política tática. Ainda assim, até mesmo o mais desatento analista pode observar a persistência das denuncias de corrupção envolvendo o PT e o PSDB (este em menor medida, é claro), seus parlamentares, funcionários de estado, juízes de cortes, etc... A denuncia permanente da corrupção - sempre limitada a alvos menos importantes - é funcional a classe dominante e tanto o PT como o governo se revelam impotentes diante da situação. A razão é clara: a disputa no interior do Estado implica, necessariamente, em compromisso com a permissividade da corrupção que, de fato, não respeita fronteiras políticas e ideológicas. É prova disso a incapacidade do PT em oferecer uma resposta dura ao tema da corrupção em seu último congresso, realizado num hotel da Bahia. Uma semana após sua realização, o ex-presidente Lula atacava o partido abertamente explicitando a senilidade das "resoluções" estabelecidas na evento. Foi, sem dúvida, o congresso mais miserável da historia do PT, incapaz de gerar qualquer efeito prático na opinião pública, na política partidária, na luta sindical ou nos movimentos sociais.

O sistema petucano não é capaz de renovação

O sistema político brasileiro - o petucanismo - é, portanto, impotente para a renovação política que milhões de pessoas, mesmo difusamente, desejam A reforma política em curso revela o tamanho da farsa parlamentar como resposta à crise e, de quebra, também exibe a incapacidade de uma saída parlamentar progressista para a crescente e justificada insatisfação popular. No limite, o parlamento sufragará o golpismo na modalidade e no momento que a classe dominante julgar conveniente (se julgar necessário!).  

O que pode fazer uma frente de esquerda neste contexto? Muito pouco!Na prática, uma frente de esquerda teria que consolidar uma aliança entre os partidos que figuram na oposição ao governo e nunca poderia estar limitada a luta contra o "ajuste fiscal" e contra o "conservadorismo social e parlamentar"; ademais, uma frente de esquerda poderia, nas circunstancias atuais, reunir exclusivamente o PSOL, o PSTU e o PCB. E poderia admitir nas suas filas apenas militantes que não mantém filiação nos partidos da "base aliada" do governo. A existência de "parlamentares rebeldes" com filiação nos partidos da base governista não deveriam ser admitida por razão elementar: é preciso reconquistar a confiança popular nas organizações de esquerda sem qualquer vinculo com o governo e o PT! Ao contrário do que muitos apressadamente diriam, esta orientação não é sectária e muito menos irreal: é precisamente a única possibilidade de acumular forças fora do arco conservador que tem revelado grande capacidade para ganhar o centro político nas disputas eleitorais. A direita brasileira tem logrado apoio considerável nas classes populares precisamente porque estas se sentem e de fato estão sem representação partidária. Na luta para não perder tudo, as classes populares podem apenas contar - ainda assim de forma limitada - com seus sindicatos que lentamente despertam da modorra lulista.  

Há muito pouco a fazer no terreno parlamentar neste momento histórico da luta de classes. É preciso acumular força nas organizações populares e sindicais contra o governo e sua base aliada sem vacilação ou inibição de qualquer ordem. A disputa atual é para identificar quem e quais organizações e em qual medida, existe uma oposição de esquerda ao governo. A oposição mais visível ao governo é obviamente de direita. A tarefa tática imediata de todos os setores identificados com a esquerda brasileira é construir sólida e sistemática oposição de esquerda. É neste momento em que pode ser necessário uma frente à esquerda, amparada tao somente nas lutas sociais e na inexorável combatividade sindical em defesa dos salários num ano em que a inflação será novamente de dois dígitos! Neste contexto, no momento nada há que resgatar da origem petista ou ainda seguir alimentando ilusões com a disputa no interior do estado na elaboração de políticas sociais quando a crise arrastou seu dinamismo para uma solução mais radical do ponto de vista da classe dominante. A adesão a qualquer iniciativa de frente política que conte com a presença dos partidos da base aliada ou mesmo um namorico com lideranças como Lula representa, nas condições atuais, muito mais do que um erro, representará rasa estupidez. Não será senão a materialização de uma velha e surrada ideologia petista - segundo a qual o governo estaria em disputa - criada exclusivamente para justificar a domesticação do PT como partido submetido a razão de estado que o levou ao fracasso histórico sem remissão.  O governo de Dilma, assim como os dois mandatos de Lula, jamais esteve em disputa!     

O governo Dilma e a ideologia do ajuste passageiro 

Todas as últimas medidas anunciadas pela presidente Dilma reforçam a economia exportadora, a estrutura fundiária baseada no latifúndio, garantem a continuidade do mega processo de endividamento estatal, os lucros extraordinários para os rentistas de distintas extração (comerciantes, industriais, banqueiros, etc) e avançam na direção de aprofundar a superexploração da força de trabalho como fundamento da dependência que finalmente nos caracteriza como país. Não somente anunciam novas etapas do lento e relativamente silencioso processo de privatização como também já se costura nos bastidores do sistema petucano a retirada de novos direitos quando entrar em debate a "necessidade" de uma nova e sempre interminável "reforma trabalhista" e novo assalto ao estado com a reforma tributária... 

A ideologia do governo Dilma se sustenta em duas ilusões: a primeira, é que a crise do Estado brasileiro é fiscal e, jamais financeira; a segunda, que o ajuste produzirá no curto prazo as condições para um novo ciclo virtuoso do crescimento econômico no longo prazo que devolverá o emprego e a renda para os trabalhadores. É pura ideologia para consumo da consciência ingenua dos trabalhadores. No entanto, a análise fria indica que a crise financeira do estado não terá solução alguma sem a auditoria da dívida e a anulação parcial ou total que inexoravelmente implicará, tamanha a corrupção e ilegalidade que sua contração e as sucessivas re-negociações engendrou.

A ambiguidade é sempre fatal em política e especialmente mortal em épocas de crise. A esquerda somente cumprirá seu papel se contribuir de maneira mais intensa e acelerada para a redefinição de um novo radicalismo político, mais urgente e necessário e viável agora, no momento em que precisamente as antigas ilusões sobre "o modo petista de governar" caiu em total e definitivo descrédito.

A ambiguidade política mata

A crise é, portanto, do governo. E o governo atual não tem recuperação. No contexto atual, caminha para derrota eleitoral inexorável nas próximas eleições presidenciais ou sofrerá eventual substituição no âmbito parlamentar, motivado por sucessivos escândalos de corrupção que são próprios do estado burgues e incapazes de encontrar no PT e sua "base aliada" resposta adequada. Mas é também uma crise do sistema político, pois amplos setores sociais não acreditam que o governo, o parlamento, os tribunais possam superar o descrédito produzido pela politização ingenua que emergiu das últimas eleições presidenciais. A sociedade em geral e as classes populares em particular, não possuem neste momento referencias críticas, tal como no passado. A posição da esquerda ou das forças que pretendem ocupar este espaço, dependerá tão somente de sua capacidade em recusar pactos que pretendam unicamente renovar a credibilidade de um governo que já não pode carregar seu próprio peso. Ora, uma frente de esquerda que mantenha a ambiguidade em relação ao Plano Real e reproduza ilusões sobre o atual sistema político, jogará as forças que restam na esquerda no terreno da ambiguidade. Uma frente de esquerda que não marque clara oposição ao atual governo - e não somente ao "ajuste" como se, de fato, as medidas fossem do ministro-banqueiro e não da presidente - será incapaz de enfrentar a direitização (real e potencial). Uma frente de esquerda que não delimite sua clara oposição ao governo e sua base aliada produzirá outro fenômeno nada desprezível: em tempos de crise, a ambiguidade mata!   

quarta-feira, 11 de março de 2015

Sobre o ódio e a tolerância na política

A violência é uma característica constitutiva do Estado e, em consequência, também da política moderna. No mundo moderno simplesmente não existe política sem violência, razão pela qual tampouco existe política sem ódio. No entanto, na eleição presidencial brasileira, os dois principais partidos denunciavam a política de ódio do adversário numa tentativa de legitimação como se, de fato, pudesse existir uma “política do bem”. O comportamento equivale a clamar por justiça social numa reunião de banqueiros. A redução da política ao ritual da disputa eleitoral cada dia mais previsível, levou o Tribunal Federal Eleitoral à proibição da crítica ao adversário como forma legitima de toda atividade política. Neste contexto tanto o bem comportado comentarista da TV quanto setores das classes subalternas sentindo-se “desprotegidos” ou “vulneráveis”, bradam pelo principio da tolerância que segundo a ideologia dominante deveria reger a atividade entre os civilizados.

Há certo invólucro moral no apelo ao amor e ao respeito como regra da política, mas a vitalidade do artificio deve-se sobretudo a operação ideológica pela qual seria possível evitar a violência e o ódio numa sociedade organizada a partir do ódio e da violência. Não se trata de determinação atávica, mas de um instrumento sem o qual a política moderna não funcionaria. Em termos vulgares, há certa reivindicação de trato cordial na arena cuja regra fundamental é o conflito de interesses, particularmente acentuada nas sociedades dependentes e subdesenvolvidas que contou, na esteira da expansão do capital comercial europeu do século XVI, com a necessária violência e racismo em sua formação, marca indelével de nossa evolução histórica e de nosso presente incerto.

Nas condições particulares da sociedade brasileira, é preciso reconhecer que a partir do evanescimento da identidade classista dos sindicatos combativos e dos partidos políticos de esquerda – PT e CUT na cabeça – as classes subalternas ficaram não somente desarmadas para enfrentar o conflito inerente à sociedade burguesa, mas, sobretudo, permaneceram cativa do discurso liberal – especialmente forte nos setores da classe média – para o qual não possuem outro recurso senão o apelo retórico a tolerância e ao “fim do ódio”, ignorando o caráter utópico do discurso. Contudo, no lado da classe dominante são setores da classe média quem exibem sem constrangimento, com suas mãos delicadas, o ódio de classe contra os pobres, os proletários, contra os camponeses e tudo que lhes parece fora da normalidade burguesa ou da sociedade tradicional.  Mais grave: no contexto atual parece que os proletários e os camponeses já não existem, pois o governo – com silencio cumplice dos tucanos – insiste no caráter classemedia da sociedade brasileira, como se Marx não fosse mais do que um retrato na parede, uma reminiscência histórica talvez lúcida, valente e apropriada para o século XVIII ou XIX europeu, mas completamente sem sentido na atualidade.

Trata-se da banalização da política como expressão do conflito para a qual contribuem não somente a renuncia precoce do PT e da CUT à identidade de classe – levando consigo os comunistas e socialistas da base aliada – mas também da redução da política a moral (vulgarmente tratada como se fosse simples udenizaçao do discurso político), onde a bandeira mais importante seria o combate a corrupção. Nestes termos, a tematização da corrupção chegou pra ficar porque diz respeito a real degradação dos partidos e, portanto, do governo. Mas chegou para ficar porque é constitutivo do Estado e, em consequência, é impossível ocultar seu caráter sistêmico. Ora, a astúcia do monopólio televisivo é clara, pois apresenta a estrutura como se fosse apenas evento! O ódio à corrupção, no entanto, é quase residual em relação aos empresários, pois se destina prioritariamente ao genérico “político”, sem dúvida, um ardil liberal para não enfrentar o vaticínio de um barbudo agora suspenso em alguma parede: o estado é mesmo o comitê de negócios da burguesia. O político vulgar, o ex-sindicalista, o empresário exitoso, o liberal bem comportado, o acadêmico no conforto do campus, e tantos outros podem merecer o desprezo e ainda o ódio da classe média: este luxo da política não poderá, de maneira alguma, senão servir como álibi para a próxima operação de assalto ao estado no qual o capital também acumula.

Não é fácil ranger os dentes no terreno da política, reconheço. Mas não haverá outra saída para nós. Em termos sociais será lenta a reconstrução de um sentido e sentimento classista, a afirmação de uma identidade de classe, aquela mesmo que era apresentada como ultrapassada pelo pensamento conservador e reacionário, que iludiu muita gente boa. No entanto, aquela pressão que se exercia socialmente nos sindicatos combativos, na defesa partidária do socialismo era, mesmo quando pálida, a única capaz de tornar mais aceitável e racional todas as desavenças pessoais e justificar, em última estancia, o ódio individual pelo vizinho de porta ou de bairro. E agora?
Agora resta o confinamento parlamentar do conflito político e o exercício cínico da cordialidade típica do cretinismo parlamentar, enquanto nossos condenados da terra sangram em silêncio nas favelas e no sistema carcerário, no assassinato do líder camponês e nos milhares de mortes violentas tipificadas de maneira conveniente como “violência urbana”, seja no transito ou no boteco da esquina.

Claro que a digestão moral da pobreza é ingrediente necessário da política da tolerância e do amor, afinal, o que pode o minguado bolsa-família num país em que apenas 5% da população concentra quase 50% da renda? A esquerda liberal acredita, de fato, que a cidadania esta em construção quando o índice de Gini se move em décimas? A eliminação de um horizonte utópico – o socialismo – cuja defesa deveria ser feita aqui e agora, alimentou ainda mais o irracionalismo da política em curso e exibe suas vítimas a luz do dia.

Em resumo, enquanto o velho ódio de classe desaparece do horizonte dos pobres dissipando antiga consciência de direitos e no momento que ganha destaque a ideologia da ascensão social nos marcos do capitalismo (seriamos finalmente um país de classe média!), é necessário acusar como engodo a possibilidade de fascismo entre nós. Ora, o fascismo é fenômeno histórico que emerge como arma da classe dominante em momentos de crise de sua dominação, quando esta já não é mais possível unicamente por meios parlamentares. Não estamos, portanto, nas portas do fascismo. No entanto, esta conclusão não autoriza a falsificação histórica, especialidade do jornalismo. Uma ditadura cordial ou “ditabranda” jamais existiu. A violência e o ódio de classe existente no Brasil são suficientes para manter as coisas no seu devido lugar, sem a necessidade de recurso ao programa fascista, razão pela qual seguirá orientando a ação do Estado e certamente contará com a tolerância, a aceitação dos governos e, no limite, a recusa calibrada dos mecanismos institucionalizados da repressão.


Nas condições brasileiras o mais provável no curto prazo é que o rechaço abstrato ao ódio e/ou a evocação igualmente abstrata à tolerância navegue sem obstáculos, ideologia necessária para que tudo mude desde que permaneça exatamente igual. Assim, o suposto ingênuo de que o Brasil é “um país da delicadeza perdida” seguirá também gozando de popularidade, ainda que não passe de tirada literária falsa. A despeito da delicadeza que ainda podemos encontrar em pessoas, a norma política nos assuntos públicos é mesmo a violência. Enquanto a maioria aceitar que “um mau acordo é sempre melhor do que o bom combate” – peça do conformismo político sempre apresentada como virtude e sabedoria política – a política e a democracia serão sempre lembradas como a arte de engolir sapos. De resto, a democracia liberal admite em seu interior a manifestação e o exercício da violência por parte do Estado e de forças sociais comprometidas com a ordem dominante. Não constitui anomalia e menos ainda um ovo da serpente quando um liberal desavisado ou grande parte da esquerda domesticada acusa que o ódio e a violência estão saindo dos trilhos. O antidoto real para os “excessos” produzidos pelo liberalismo não brotará da consciência social sem dentes para morder implícita na defesa dos pobres, mas de um projeto de classe – o socialismo – e o correspondente movimento de massas em sua defesa.   

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

O colapso do figurino francês


Em minha defesa não tenho muitos argumentos. Os amigos sabem que demorei mesmo e até o último momento ainda mantinha razões para adiá-lo um pouco mais. No entanto estou convencido que o essencial esta dito e repetido no Colapso do figurino francês. Crítica as ciências sociais no Brasil livro que acabo de lançar pela Editora Insular, de Floripa (Capa de Tadeu Meyer).


A dominação cultural, ou seja, o colonialismo, é devastador no Brasil e possui particular força no meio universitário, entre os chamados acadêmicos. É claro que o colonialismo afeta também as forças ou pessoas tendencialmente críticas, de esquerda, aquelas destinadas a nadar contra a corrente, entre as quais me incluo. No entanto, é fácil perceber que em nossas filas, o figurino francês, esta tendência natural à cópia, a importação das modas intelectuais emanadas da Europa e/ou dos Estados Unidos, sempre gozou de certo prestígio. Alguns de maneira dissimulada chamam o fenômeno de "hegemonia" como meio eficaz para não dizer "colonialismo intelectual e científico" e, em consequência,  ignoram olimpicamente a industria cultural dos países metropolitanos. Muita gente boa entrou nessa, temo que a maioria. Agora, o surrado figurino francês cedeu lugar ao figurino gringo: antes do francês - domínio completo entre as elites dominantes durante quase dois séculos - os esnobes dizem que nesta "nova onda" é preciso pensar, escrever e publicar em inglês.

Aqui no Brasil, mais do que em qualquer outro país latino-americano, todo candidato a crítico (literário, político, cultural, etc) não perde oportunidade e tempo para condenar o nacionalismo. A maioria talvez sequer percebe que a nova moda literária francesa ou o último grito da sociologia estadunidense que invariavelmente adotam, nada tem de universal: é tão somente literatura nacional francesa ou sociologia gringa. O nacionalismo é tema vasto, mas na conduta bocó dos acadêmicos, trata-se de doença tipicamente tropical. Obama ou Zarkozy, ultra-nacionalistas de carteirinha, são considerados governantes preocupados unicamente com o bem da Humanidade e jamais como o que de fato são, ou seja, representantes do interesse nacional das duas potências imperialistas. Somente a superação do divórcio entre marxismo e nacionalismo (a questão nacional) abrirá as portas para a solução de velhos e novos desafios teóricos e políticos necessários para a reconstrução da esquerda revolucionária no Brasil.  

Na teoria social, a conduta colonizada que caracteriza o academicismo dominante desconhece a notável contribuição do pensamento crítico latino-americano para a interpretação de nossa realidade. Desconhece também a enorme influência que o programa de pesquisa acerca do subdesenvolvimento e a dependência - uma contribuição latino-americana - exerceu nos principais intelectuais dos Estados Unidos e da Europa (também da África). A teoria marxista da dependência é a mais importante contribuição teórica da esquerda na América Latina para a fundamentação de uma nova praxis política. Não será possível reconstruir o radicalismo político necessário em um país subdesenvolvido e dependente como o Brasil, sem revisá-la profundamente, sem compreender sua notável contribuição para o programa da Revolução Brasileira.  

O colapso do figurino francês. Crítica as ciências sociais no Brasil, reúne ensaios destinados a reflexão sobre esta espécie de elo perdido das ciências sociais, cujo esquecimento foi produzido pelos dólares da Fundação Ford que sustentaram centros de estudos como o CEBRAP de Fernando Henrique Cardoso e também pelo veto imposto aos teóricos radicais da teoria marxista da dependência em programas de pós-graduação em economia e sociologia de universidades como a USP e a UNICAMP. Neste momento, tanto à esquerda quanto à direita do espectro político, todos se declaram desenvolvimentistas. Foi precisamente este consenso, produzido pelo consórcio "petucano" no terreno da luta política, que autorizou a retomada da necessária crítica realizada pela teoria marxista da dependência ao capitalismo dependente que sofremos.

Nelson Rolim, editor e amigo, trouxe-me os exemplares num café da manhã, no penúltimo dia desde dezembro triste de 2014.