quarta-feira, 28 de maio de 2014

Um filme contra GETULIO, um filme contra a memória histórica

Entre todas as mortes de Getúlio Vargas, não vi ou li nada pior que a versão oferecida por Carla Camurati e João Jardim, o casal que produziu GETULIO, o filme. A trama desenvolve-se no curto intervalo de 19 dias, ou seja, entre o tiro que vitimou o major Rubens Florentino Vaz, feriu o principal inimigo político do presidente - o jornalista Carlos Lacerda - e o suicídio de Getúlio Vargas ocorrido em 24 de agosto de 1954.

Em uma peça promocional Carla Camurati afirma objetivo da empreitada: "o que a gente queria é que a historia do Brasil contaminasse emocionalmente o público. Que você assistisse este filme e ficasse realmente emocionado com a historia do seu país, porque é isso, esta é a nossa história, esta é a sua historia".

Diante de tal propósito, nada poderia ter sido mais desastroso. Nem falso. A diretora tenta estetizar a solidão do poder, revelar a intimidade supostamente dura de seu exercício por um personagem que tanto marcou a vida nacional quanto soube como poucos manter o controle da política por um largo período histórico. No entanto, antes de mostrar a trajetória de um líder que efetivamente comandou grandes transformações no Brasil, o filme exibe um Getúlio cativo do medo, um homem vacilante e sobretudo angustiado; naquele roteiro Getúlio nunca superou a posição de um sujeito atormentado pelo fantasma da prisão, de alguém que deixaria o poder não na condição de mártir mas de um relés corrupto, algemado e encurralado pela ação oposicionista liderada na aparência pelo jornalista Carlos Lacerda. Para todo aquele que desconhece a Historia e acreditou na historinha condensada pelos autores do filme, Getúlio nunca passou de um chefe de governo marcado por um "mar de lama", ou seja, um governo atravessado pela corrupção não somente sem controle, mas sobretudo intolerável para a "opinião pública" porque supostamente contaria com a cumplicidade presidencial. Não vemos um filme que retrata os dias finais de um estadista que decide pelo suicídio nos estreitos limites da lógica férrea das condições políticas e sociais extremas, mas precisamente de seu oposto. A trama histórica cede lugar quase que completamente para o drama pessoal de um homem finalmente fraco, débil - e insisto - medroso. Ora, nada mais distante da realidade do que um Getúlio sendo devorado pelos fatos sem reação ou simplesmente tomando medidas que terminam por incrimina-lo ainda mais num episódio que não foi, nem de longe, a razão fundamental de seu suicídio. Em resumidas contas, impossível amar a história neste enredo. Menos ainda identifica-la como "nossa história".

De resto, Carlos Lacerda, um jornalista sem virtudes, venceu uma vez mais Getúlio. Agora na ficção. A visão que prevaleceu no filme foi, sem dúvida, precisamente a marca construída por Lacerda contra Getúlio. A trama consegue inclusive esterilizar a importância estratégica da carta testamento de Getúlio, um documento de caráter histórico, denso, anti-imperialista, no qual as forças que conspiram contra seu governo são reveladas e não podem ser resumidas nas denuncias de um personagem menor como Carlos Lacerda, conhecido pelo apelido de "o corvo". Eu bem sei que a ficção tem lá suas liberdades, exceto a de falsificar a historia. É isso que o filme faz. Não é um filme deprimente apenas, É sobretudo falso.

Palmério Dória conta em um de seus últimos livros que o jornalista Armando Nogueira, única testemunha ocular do atentado da Rua Toneleiro, confidenciou anos atrás quando ambos trabalhavam na Globo que mentiu no episódio: jamais teria visto Gregório Fortunato na cena do crime. No entanto, guardou silêncio e levou o segredo ao túmulo. No filme, sequer as evidências de que Lacerda teria atirado contra seu próprio pé são levadas a sério. Toda a carga da "emoção" é despejada sobre Getúlio e suas insuperáveis angústias.

A exemplo de outras tantas gerações, também a minha nasceu sob o signo da profunda desconfiança em relação ao nacionalismo, razão pela qual, desde sempre, todo e qualquer nacionalismo soava nocivo. Durante muito tempo, o ex-presidente João Goulart, por exemplo - sem duvida um grande político - jamais logrou superar em minha imaginação a estatura de uma figura boemia, um mulherengo incorrigivel e sobretudo vacilão diante de decisões políticas cruciais. Jango, ademais, figurou durante muito tempo como alguém despreparado para o exercício do poder político e muito possivelmente ainda é esta a imagem que as escolas e os partidos políticos reproduzem.

Em relação a Getúlio Vargas o preconceito - e o desconhecimento também - sempre foi mais profundo. O estado moderno no Brasil nasce com a Revolução de 30 encabeçada pelo líder gaúcho; ainda assim, Getúlio sempre foi homem associado ao "caudilhismo", expressão com a qual a sociologia brasileira tratou de exorcizar como fenômeno necessariamente nefasto, anti-democrático, autoritário e, sobretudo, atrasado. À luz das transformações que operou no estado, na economia e na cultura do país, deveria parecer fácil, mas na verdade é difícil observar Getúlio Vargas como o líder político mais moderno que já possuímos. Todas as grandes instituições políticas e estatais foram basicamente construídas em seus governos: do voto feminino a instituição do salário mínimo, da siderurgia ao  controle do petróleo, sem falar no fortalecimento da identidade e cultura nacional. Getúlio é o personagem que organiza o estado burguês num país periférico latino-americano. Desde esta perspectiva, nada poderia ser mais "moderno". Na tradição hispânica, descobri que um caudilho, antes que expressão exclusiva de autoritarismo, sempre foi na verdade um termo que salienta as virtudes daquele líder capaz de reunir dotes militares e políticos. O caudilho era, em resumo, um líder de massas. E um líder de massas nas sociedades modernas não é algo que podemos depreciar e menos ainda prescindir, embora a maioria o faça. O caudilho não é, obviamente, uma deformação típica de países periféricos, especialmente os latino-americanos, pois também verificamos este tipo de liderança nos países metropolitanos. No entanto, a sociologia e a ciência política dominante os classifica como "estadistas", figura supostamente dotada de todas as virtudes que raramente podem aparecer na periferia capitalista. O estadista é, de maneira geral, tratado como um vitorioso enquanto o caudilho ineapelavalmente aparece como um derrotado. Não importa a causa como tampouco faz sentido buscar as razões uma vez que todo caudilho está, previamente, condenado.

Longe de minha intenção idolatrar Getúlio pois tampouco são pequenos alguns de seus erros e algumas de suas opções políticas são mesmo gravíssimas. O tema agora é o filme. Um filme cuja pretensão é fazer a gente amar a história, a "nossa história" segundo a própria Camurati. Mas a história ali recuperada - insisto - é a versão lacerdista. O contraste é tal que por primeira vez pensei no suicídio de Getúlio como um ato de coragem e não de covardia como a trama sugere e os livros de história ainda ensinam. Não há povo no drama individual do ex-presidente. O povo finalmentre aparece quando o filme termina e cenas de época revelam a comoção popular em função da desaparição do grande líder. Há, de fato, um abismo impossível de explicar entre o solitário e perplexo Getúlio que perambula angustiado, quase inerte, aparentemente sem alternativas nas noites intermináveis do Palácio do Catete, e a movimentação de massas espotânea que mobiliza milhares e milhares de pessoas após o anuncio de sua morte, e que deixou seus adversários e críticos em silêncio além de ocultos durante meses. Getúlio aparece como se ele, de fato, não tivesse outro recurso senão o tiro no peito.

Conversa com soldados em 1942.  
Há dois meses - mera coincidência - li os dois primeiros tomos da trilogia sobre Getúlio publicada pelo jornalista cearense Lira Neto. Aguardarei o terceiro volume sem esperança alguma de que possa ser muito distinto dos volumes anteriores, obra de natureza idiográfica, quase que exclusivamente orientado pelo valioso diário que Getúlio Vargas escrevia e onde deixava preciosas notas e indicações. O livro de Lira Neto - elogiado por Fernando Henrique Cardoso e Lula - não me despertou particular interesse, embora me benificiei com a riqueza de detalhes sobre a vida política nacional que somente de maneira geral conhecia. Foi útil, pois é impossível nada aprender em mais de 1000 páginas. No entanto, o alcance político da obra é limitado e não atribuo esta notória insuficiência a débil formação sociológica e política que os jornalistas de maneira geral sofrem. Numa obra exaustiva, há episódios decisivos que simplesmente não podem ser tratados com superficialidade, como por exemplo, entre tantos outros, a vitória de Getúlio sobre os paulistas em 1932. Em dois parágrafos a batalha esta decidida! Getúlio não brilha por dotes militares - que certamente tinha - e tampouco figura como hábil negociador diante do poder econômico que já se estruturava em São Paulo contra um Brasil soberano, somente possível quando distantes dos Estados Unidos. Uma lástima!

Quanto a GETULIO, não resta dúvida que o filme pretende reduzir o horizonte histórico da época ao drama pessoal do ex-presidente, não por razões estéticas, mas por clara motivação política. Não se trata de pedir à obra de arte uma lição de História. Uma obra de arte com clara intenção politizante deve ser, antes de qualquer coisa, uma obra de arte. Não é o caso. No livro, questões relevantes são superficialmente tratadas. No filme, a falsificação da historia é grotesca. Suspeito não tratar-se de mera coincidência. Tudo indica que para a produção cultural dominante, estamos condenados a ser um povo carente de grandes políticos. Estadistas e heróis existem? Sim, certamente, mas além mar. Aqui, entre nós, nem pensar.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Pra não dizer que não falei do Che

A historia é deliciosa. Ocorreu há alguns anos e revela o quanto um reitor pode ser miserável intelectual e politicamente. Era um reitor provisório, é verdade. Mas era um reitor. Com a pretensão de tomar medidas de impacto logo de assumir a função, armado com a ilusão de marcar para sempre sua fugaz gestão, decidiu eliminar uma enorme figura do Che há anos ilustrada na parede de um edifício central da Universidade Nacional de Colômbia, em Bogotá. Algo assim como quem diz, "a moleza acabou, agora há aqui, finalmente, uma autoridade". Ele julgou seu ato protegido pelo clima dominante no país que sempre garantiu larga margem de impunidade a qualquer autoridade, mesmo as mais insípidas e pouco influentes. No entanto, no dia seguinte o retrato do Che brilhava na parede novamente. De quebra, desafiados, os estudantes não somente rapidamente reconstruíram a enorme gravura, mas reproduziram centenas de minúsculos retratos do Che Guevara nas calçadas, muros, prédios, como se uma especie de febre guevarista tivesse afetado a estrutura física da universidade após a decisão da autoridade. Diante da ausência de vacina para tal enfermidade, o reitor esqueceu a disputa rapidamente como se nada tivesse acontecido e muito provavelmente, no íntimo, aceitou de bom grado a volta da imagem consagrada pela fotografia de Korda. Talvez tenha julgado adequada a "troca" inesperada imposta pelos estudantes.


Foi por esta pequena disputa que o retrato do Che ainda descansa na parede de um importante edifício na Universidade Nacional. Não tenho saudades de 68 pois, entre outras razões, foram anos que não vivi. Não os fantasio e tampouco os ignoro. Há, de fato, grande importância na década de sessenta, pois foi uma época onde compromisso militante, movimento de massas, horizonte utópico e importantes contribuições teóricas coincidiram. Sem saudade, repito, considero que todos aqueles que conseguem respirar no esterilizado ambiente acadêmico que sofremos, deveriam olhar e quem sabe estudar algo sobre o período. De minha parte, entre os autores daquele efervescente tempo, li com devoção Marcuse, pois era evidente tratar-se de um dos intelectuais frankfurtianos nada disposto a deixar "mensagens em garrafas", para usar uma feliz expressão de sua autoria. O filósofo radicalizou, foi considerado "profeta" pela armadilha midiática e provou também o amargo sabor de uma derrota histórica. No entanto, jamais perdeu a lucidez e muito menos arregou, o que não é pouco. Antecipou com invejável precisão o fim das barricadas, a partir do qual a vida se reduziria a "larga marcha através das instituições" e na qual o trabalho educativo seria o mais importante ainda que menos sedutor. Vaticínio certeiro, afinal, o antigo militante compromissado de outras épocas cedeu espaço para o "agitador" eletrônico, e as novas lideranças estão mesmo de olho numa candidatura a deputado ou numa assessoria parlamentar, antes que arregaçar as mangas em projetos educativos de resultados mais lentos, menos visíveis e com efeitos mais duradouros. O deputado e o sindicalista querem, quando muito, melhorar o sistema na ilusão de que tal meta é possível.   

Este inicio de século pinta distinto. O pragmatismo comanda a vida política e mesmo entre aqueles com inclinação "critica", predomina certo ceticismo funcional à ordem dominante. Não creio que um retrato na parede possa mudar alguma coisa e tenho plena convicção de que os estudantes - aqueles mesmos que reafirmaram o lugar do Che de maneira tão vistosa - tampouco alimentam qualquer ilusão a respeito. As paredes da universidade lá em Bogotá estão bem animadas, como vocês podem ver. De minha parte, trocaria a limpeza geral dos edifícios por uma boa reforma curricular que enfrentasse a paralisia intelectual,a repetição canônica, o eurocentrismo, e a mais completa falta de contato com a realidade que orienta a formação universitária em todo o continente.

Estudantes pintam edificios na UNC
Os estudantes também aceitariam esta troca, estou seguro. É óbvio que nenhum reitor ou reitora na atualidade possui a coragem intelectual suficiente para mexer numa linha da grade curricular, um tema praticamente proibido entre nós. Ministro algum arriscaria seu cargo num projeto semelhante. Os pro-reitores silenciam também... Os estudantes, o únicos interessados em tal mudança estão demasiadamente partidarizados (não politizados!) para tematizar o currículo e os métodos de ensino como um problema político central. Nestas circunstâncias, o que pode uma gravura na parede diante de aulas enfadonhas e alienantes que ocupam diariamente a imaginação na sala de aula com o intuito de aliena-la? Nada, obviamente. Os professores que ditam o ritmo nas universidades se julgam sábios superiores aos doutores escolásticos do século XVI ou simulam a autoridade dos catedráticos da antiquada universidade colonial latino-americana que finalmente foi enfrentada em 1918, em Córdoba, Argentina. Em consequência sentem-se - e atuam - com pedagogia reacionária. As pinturas acima funcionam como alegoria, sem potencia reformadora e menos ainda revolucionária. Recordam, no entanto. E alguém tem que recordar porque afinal, esta é também a nobre função da filosofia. Ainda que o tempo presente pareça ter condenado para sempre uma possibilidade radical de mudar o estado das coisas.